É muito comum, em um mesmo vagão de metrô, ouvir diversos idiomas. Inglês, francês, espanhol, russo, chinês, japonês, suecos e o português se misturando livremente nas mais de trezentas estações de metrô espalhadas por Paris. Das capitais europeias, Paris, talvez, seja uma das mais cosmopolitas.
Tamanha diversidade se explica
pela história de lutas e revoluções que ocorreram – e ocorrem –, em suas
avenidas largas e arborizadas (boulevard). Uma conquista que o tempo
reconhece e nos faz refletir: “o que tem de tão especial naquela região do
mundo? Por que é palco de tantas revoluções?”
Apenas seis quilômetros separavam
a região de Montmartre, que abriga a Basílica de Sacre Coeur,
do Pére-Lachaise. Conhecer um cemitério pode parecer algo estranho, mas
conhecer o maior cemitério de Paris, que abriga os restos mortais de figuras
que foram ilustres na sociedade (Balzac, Oscar Wilde, La Fontaine, Proust,
Delacroix, Pierre Bourdieu, Champollion, Auguste Comte, Chopin, Edith Piaf, Jim
Morrison, Molière, etc.), não seria tão estranho assim.
Era um desejo turístico (ou
seria a realização de um sonho?), afinal, Kardec não estava "ali" e sim os despojos do que um dia foi seu corpo físico.
Graças aos esforços de Kardec, é possível compreender a continuidade da vida
como um fenômeno da lei natural, que nos abriga a todos, indistintamente. A
vida continua em sucessões de aprendizados por meio das diversas experiências
na Terra e alhures, até alcançarmos a perfeição. E isso, ao contrário do que possa parecer, não é punição, sobretudo quando se tem uma ideia do quanto ainda é possível progredir e melhorar como ser humano.
A Place de Clichy era o
ponto de metrô mais próximo. Ao percorrer a Rue Caulaincourt até o
metrô, percebia-se que não estávamos sozinhos. À distância, todos que passavam por aquela rua eram vigiados pelo topo da Torre mais famosa do
mundo, Eiffel, que a tudo observava. Compreendemos melhor porque Paris foi escolhida para ser o laboratório
de Allan Kardec para legar-nos o Espiritismo: essa cidade irradia energias e
belezas que o homem materialista ainda não conseguiu perceber. Cada revolução ali desenvolvida, amadurecida, projetou luzes para outros pensadores ao longo do tempo serem instrumentos para a transformação social que se vislumbra. Apenas um exemplo, para ilustrar, na Prússia, quando um singelo professor que vivia de aulas particulares e mudando de pensão em pensão, passando por dificuldades das mais diversas até conseguir, influenciado pelos Iluministas (philosophes), legar-nos pensamentos profundos e atuais sobre o livre-arbítrio e demais problemas "metafísicos" no afã de aproximar a religião da razão, como um dos mais eruditos filósofos de todos os tempos, Immanuel Kant (1724-1804).
“A palavra de Deus estava
esquecida, se é que se tornou lembrada alguma vez. Foi quando chegou a época em
que era preciso abalar a consciência humana por meios persuasivos
pela força da prova”, asseverou o Dr. Carlos Imbassahy a respeito do advento da Doutrina Espírita, tão a
propósito de homenagear aquele que merece todas as honras por seu magistral
trabalho. O trabalho de Allan Kardec é tão grande que seus restos mortais
deveriam estar no Panthéon, junto com J.J.Rousseau, Victor Hugo, Voltaire,
Fenelon, Laplace, dentre outros.
Em 18 minutos o metrô percorreu
treze estações, até a Phillippe Auguste. Difícil descrever a emoção. Cada rua contava uma história! Seus
prédios com arquiteturas imponentes, sóbrias, transmitiam um ar de maturidade
que não encontramos em outros lugares. A natureza sorridente, a cidade plana a
maior parte do tempo, seus serviços funcionando de forma plena, tudo
conspirando para entender porque a Cidade Luz ainda irradia e abriga uma enorme
diversidade de pensamentos, sentimentos e compreensões acerca da vida.
O coração acelerou ao descer na estação que da acesso a entrada principal do Pére-Lachaise. Nosso ponto deveria ser outra portaria, mais próxima do túmulo, mas não sabíamos. Caminhando até o pórtico principal, as colunas que sustentam o portal apresentam duas inscrições em Latim, como guardiãs da memória daqueles que um dia passaram para a outra dimensão da vida, como diria o escritor francês Victor Hugo. À esquerda “Spes illorvm immortalitate plena est” (A esperança deles está cheia de imortalidade) e à direita “Qvi credit inme etiams imortvvs fverit vivet” (Quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá).
O Pére-Lachaise é grande, contudo, logo no início, é possível apontar o celular para um qr-code e seguir um mapa com as divisões e localizações dos túmulos. Entramos pela porta principal e por isso andamos bastante até encontrarmos o Dólmen. Antes, porém, tivemos a surpresa de encontrar o jazigo do fundador da Homeopatia Christian Frederich Samuel Hahnemann. Na manhã ensolarada e quente do verão francês, o jazigo refletia intensa luminosidade, destacando-se dos demais.
Jazigo de Hahnemann - Père-Lachaise (fonte: acervo autor, 2019) |
Continuamos subindo, percorrendo as "ruas" do Cemitério à procura do Dólmen, ao som do corvejar dos corvos. A sensação era de estarmos em um filme de suspense, onde o silêncio era cortado apenas pelo grasnar dos corvos, de tempos em tempos. O momento era de profunda introspecção.
Chegamos à 31ª Divisão do Pére-Lachaise. O jazigo mais florido e "vivo" surge repentinamente. Que emoção! Os olhos marejaram como uma criança diante de um presente muito querido e sonhado. Lembrar que a proximidade maior de um homem como Allan Kardec se dava naquele lugar, naquele espaço fez suspender a respiração por uma fração de tempo, como se o próprio tempo parasse para que pudéssemos contemplar e curtir aquele momento.
Tanta coisa vivemos em uma existência até realizarmos alguns desejos que parecia difícil acreditar que um dia, saído do interior de Minas Gerais, passando por profundas e bruscas mudanças no decorrer da vida, pudéssemos ser beneficiados com aquele momento. Nos rendemos à mais profunda introspecção e buscamos, no fundo do coração o sentimento mais genuíno de gratidão por estar ali, por agradecer a Deus a oportunidade de aproximar do fundador da Doutrina Espírita. O Espiritismo que acolhe, orienta, educa e consola se fez presente, enchendo nosso ser de esperanças em um mundo melhor, sobretudo, em continuarmos acreditando em nossa melhora íntima como ser humano.
Do que adiantaria conhecer aquele lugar, se ele não falasse conosco? "Aquele que visita um túmulo, apenas manifesta, por essa forma, que pensa no Espírito ausente. A visita é a representação exterior de um fato íntimo." (323 OLE)
Conversamos com Kardec. Rogamos ao Mais Alto que pudesse nos auxiliar a todos para compreendermos melhor o sentido transformador da Doutrina Espírita. Que o Espiritismo fosse a bússula consoladora enviada por Jesus para ampliar nossa capacidade de agir no bem, proporcionando-nos o refazimento pela educação de nossas imperfeições, pela sensibilização de nossos corações ainda empedernidos e renitentes no orgulho e egoísmo avassaladores. Pedimos ainda mais, pedinte que somos, uma nova oportunidade de releituras doutrinárias, que pudessem mais confortar e esclarecer do que envaidecer e desamparar; que pudéssemos aprender a sofrer enquanto não dominássemos a etapa de aprimoramento espiritual que ansiamos; que pudéssemos aprender a amar sem cobrar amor; que pudéssemos agradecer, ainda que estropiados e ofendidos; que pudéssemos auxiliar a consolar os corações mais sofridos e sem esperanças, para que vissem em nossa transformação um vestígio dos esforços empreendidos para buscar a luz; pedimos uma vez mais que não deixasse nossa vontade esmorecer e nem a chama da fé se apagar; e por fim, agradecemos. Agradecemos o fato de termos plena consciência de não sermos merecedores do tanto que Deus proporciona para o nosso crescimento e rogamos proteção para aqueles que, de boa vontade, conseguem dar passos mais firmes, seguros e equilibrados rumo a um ser melhor, mais fraterno e compreensivo.
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