O contato com a Doutrina Espírita é um convite ao conhecimento. Para compreendermos melhor a existência e a sobrevivência da alma após o desencarne, somos convidados pelo Espiritismo a deixar de lado ideias preconcebidas, aquilo que acreditávamos conhecer e enveredarmos por um conjunto de reflexões capazes de influenciar o mais cético dos investigadores. Contudo, a ignorância, que foi por muito tempo combatida, pode ser um instrumento curioso para nosso aprendizado.
Peter Burke, professor emérito da Universidade de Cambridge,
em sua recente obra “Ignorância – uma história global”, torna o tema ignorância
atraente, leve e ao mesmo tempo profundo, de fácil compreensão, dada a riqueza
da abordagem histórica.
Compulsando suas páginas é possível observar, pela didática
aplicada, porque “desconhecemos algo que é conhecido” e “desconhecemos algo que
é desconhecido”. Para o autor, as duas sentenças não são iguais. Os alemães distinguem
ignorância (unwissen) de desconhecimento (nicht-wissen). Em
inglês a ignorância é distinta da nesciência e ambas do desconhecimento.
O desconhecimento de algo conhecido é ilustrado pelo autor como algo que já se
sabe a existência, contudo, até aquele momento não havia sido revelado,
conhecido, como é o caso da estrutura do DNA antes de sua descoberta em 1953.
Já o desconhecido, desconhecido, é tratado como aquilo de que nem fazemos ideia
que exista (e a abordagem pode ser tanto religiosa, filosófica quanto científica).
Nessa linha de raciocínio de Burke, podemos refletir no
desconhecido, desconhecido, como o Universo. Leon Denis em “O Grande Enigma”
diz que “o Universo é um poema sublime do qual começamos a soletrar o primeiro
canto.” Por mais fértil seja a mente humana, por melhor intuído tenha sido o
indivíduo ao longo do tempo, a realidade é que existem caminhos insondáveis
pelo ser humano da atualidade e que todo vislumbre é, de fato, uma ideia
imprecisa de algo que ignoramos em extensão e profundidade aplicando-se as
áreas do conhecimento humano. Por isso, quando Emmanuel diz que a evolução de
Jesus se perde na poeira dos tempos, assume uma proporção gigantesca, graças a
ignorância de como e quando ocorreu a evolução de Jesus...
Existem mais de seis mil idiomas e dialetos no mundo,
atualmente. Um poliglota, provavelmente ignora mais de 90% de todos os idiomas.
A propagação do coronavírus em 2019 foi prevista por epidemiologistas que
haviam descoberto o perigo da transferência de diferentes animais selvagens
para humanos. Por outro lado, governos não sabiam, ignoravam ou não quiseram
tomar conhecimento. É como se o Burke dissesse que existe uma ignorância “boa”
e uma ignorância “má”. E os exemplos são vários.
Quando transportamos essa reflexão para o conhecimento
doutrinário, embora autores clássicos sejam sempre falados (conhecidos), mas
nem sempre estudados (desconhecidos), é notório a importância de se estudar
obras que nos façam “transgredir” a ignorância existente. A superficialidade ou
a “liquidez”, como diria Bauman, tem afastado os indivíduos do Espiritismo. Porque
nem se estuda Espiritismo e nem se estuda Evangelho aprofundadamente.
Os textos para serem lidos precisam ser “curtos”. Os vídeos
precisam ser curtos. As casas espíritas reduziram os estudos para no máximo 50
minutos, porém, mantiveram o mesmo formato de “palestra”, algumas vezes com a
interação e outras vezes sem interação com o público. Por outro lado, é
possível que essa mudança tenha estimulado ainda mais o surgimento de propostas
que apresentem soluções “para tudo”, de forma rápida, quase instantânea e sem “burocracia”.
Ainda sobre essas mudanças que acontecem na atualidade, estudos para parecerem “estudos
sérios” são maçantes, pouco conteúdo doutrinário e, parafraseando a professora
Marilena Chauí, esse movimento digital tem produzido uma “subjetividade
narcisista” onde, “existir é ser visto”.
Com isso, a professora utiliza o pensamento de Freud que diz
que o narcisismo é inseparável da depressão... o conhecimento que não conhece a
si mesmo, como diria Lacan, continua sendo pouco explorado e por isso ignorado
por aqueles que tentam, cotidianamente divulgar a Doutrina Espírita antes mesmo
de aprofundar o conhecimento em si mesmo.
Como consequência, diríamos que, entre incentivar o apedeutismo doutrinário ou combate-lo, ficamos com a presença da ignorância se avolumando e a importância cada vez maior de se unirem esforços para fazer luzir dentro de cada um de nós primeiro a riqueza doutrinária que a tantos educa, consola e transforma.
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